Um recurso hoje comum na Justiça brasileira, a tornozeleira eletrônica tem uma origem inusitada ligada ao universo dos quadrinhos. A ideia do dispositivo, usado para monitorar investigados ou condenados de baixa periculosidade, surgiu a partir de uma história do Homem-Aranha publicada nos Estados Unidos em 1977.
A tirinha que deu início a tudo
Naquele ano, além dos tradicionais gibis mensais, o herói aparecia em tiras diárias veiculadas em jornais. Entre agosto e setembro, uma dessas histórias mostrou o Rei-do-Crime prendendo no Homem-Aranha uma pulseira capaz de rastrear cada movimento do herói, impossibilitando sua remoção sem ferramentas especiais.
O enredo chamou a atenção do juiz Jack Love, então em exercício no estado do Novo México. Impressionado pela utilidade do artefato fictício para a vigilância de infratores, ele passou a considerar um equipamento semelhante para aplicação real no sistema judiciário.
Do papel para o laboratório
Com a ideia em mente, Love procurou o engenheiro Michael Goss. A dupla iniciou o desenvolvimento de um protótipo que recebeu o nome de “algema eletrônica”. O primeiro modelo tinha dimensões equivalentes a uma caixa de cigarros e ficava fixado ao tornozelo do usuário.
O aparelho enviava sinais a um receptor ligado a uma linha telefônica fixa. A cada 60 segundos, o sistema verificava se o portador permanecia dentro de um raio de 45 metros. Caso o limite fosse violado, a central de polícia recebia uma ligação automática.
Testes iniciais e resultados
O uso experimental começou em 1983. Três pessoas condenadas por crimes considerados leves participaram do projeto-piloto conduzido por Love. O primeiro monitorado, detido por emitir cheques sem fundo, precisava cuidar de uma criança em casa e recebeu autorização para cumprir 30 dias com o equipamento.
Apesar da medida, o homem foi flagrado furtando mercadorias em uma loja poucas semanas depois. O segundo caso envolveu um veterano da Guerra do Vietnã que, seis dias após a instalação da tornozeleira, violou a condicional ao ser encontrado embriagado, retornando ao cárcere por receptação.
Já o terceiro participante, preso pela segunda ocorrência de direção sob efeito de álcool, completou o período de 30 dias sem novas infrações. Esses testes mostraram tanto as limitações quanto o potencial do monitoramento eletrônico para reduzir a superlotação carcerária.
Industrialização e expansão
Com a repercussão dos experimentos, Love deixou a carreira na magistratura para fundar, ao lado de Goss, a empresa Goss-Link, dedicada à fabricação das tornozeleiras. Embora a ideia tenha ganhado notoriedade, a companhia entrou em falência em 1984 por falta de capital para ampliar operações.
A essa altura, contudo, outras empresas já se interessavam pela tecnologia e passaram a produzir versões aprimoradas do equipamento. O conceito se espalhou pelos Estados Unidos ao longo da década de 1980 e, posteriormente, alcançou diversos países.
No Brasil, o uso do monitoramento eletrônico começou a ser adotado como medida cautelar para investigados sem sentença definitiva e como alternativa à prisão em regime semiaberto. O dispositivo se tornou frequente em decisões judiciais, permitindo controle de deslocamento com custos menores que o encarceramento.
Quase meio século após a publicação da tirinha que serviu de inspiração, a tornozeleira eletrônica segue evoluindo. Modelos atuais empregam GPS, comunicação celular e sensores adicionais, mas mantêm o princípio essencial concebido por Love e Goss: garantir, à distância, a presença do usuário dentro dos limites fixados pela Justiça.
A ligação entre a cultura pop e a inovação tecnológica, evidenciada por esse caso, demonstra como elementos da ficção podem motivar soluções aplicáveis a desafios do mundo real, ainda que o sucesso comercial inicial nem sempre acompanhe os inventores.